PEC 3/2022 extingue os chamados terrenos de marinha e os transfere para os atuais ocupantes, mesmo sem registro; críticos apontam riscos ambientais e de conflitos fundiários
O assunto “privatização de praias” ganhou espaço no debate público nos últimos dias, inclusive gerando desentendimentos entre famosos. O centro dessa discussão é uma possível alteração na Constituição Federal que, embora não privatize diretamente a faixa de areia e as águas litorâneas, abre ainda mais espaço para a especulação imobiliária no entorno e nos acessos às praias, o que gera riscos ambientais, alertam especialistas.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 prevê a transferência de parte dos terrenos da União no litoral do país, os chamados terrenos de marinha, para estados, municípios e ocupantes privados, sejam pessoas ou empresas – incluindo “ocupantes não inscritos”, o que é apontado como um incentivo à grilagem e à ocupação desordenada. Ambientalistas apontam ainda, como consequência de uma possível aprovação da proposta, que a gestão de territórios importantes para a adaptação às mudanças climáticas será prejudicada.
Uma audiência pública realizada no Senado Federal na semana passada (27), presidida pelo relator da proposta na casa, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), discutiu o assunto. O debate foi feito por representantes da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) – a quem cabe demarcar e administrar formalmente essas áreas, cobrando taxas de seus ocupantes –, do Ministério do Meio Ambiente e outras áreas do governo, de pescadores, portos privados e parlamentares. A maioria dos presentes se declarou contrária à PEC.
Os terrenos de marinha, em si, não são de identificação simples. Segundo a Instrução Normativa 28/2022, da SPU, esses terrenos são “os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés” e “os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés”. Já os chamados acrescidos de marinha são “os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha”.
Identificar essas áreas é parte do trabalho da SPU. Segundo Carolina Gabas Stuchi, secretária-adjunta de Gestão do Patrimônio da União e representante do órgão na audiência pública, apenas cerca de 30% desses terrenos estão demarcados atualmente. A secretária trouxe estimativas de que existam 48 mil km lineares de faixa de terrenos de marinha, com 15 mil km demarcados – 11 mil deles desde 2020. O único estado com toda a demarcação realizada é o Amapá. O processo ainda está em andamento em outros 17 estados, e o tempo necessário para a conclusão em cada um é estimado em 2 anos pelo órgão – ou seja, demarcar todas essas áreas, com o curto orçamento e pessoal da SPU, levará anos.
E, embora a PEC não preveja explicitamente a privatização de qualquer área a novos empreendimentos privados, por exemplo, a transferência de propriedade da União para particulares, ou mesmo para municípios, abre margem para a ação da especulação imobiliária – inclusive com pressão sobre povos e comunidades tradicionais –, já que os novos títulos definitivos de propriedade poderiam ser vendidos sem controle da União.
Ana Ilda Pavão, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), externou sua preocupação com essa possibilidade. “Muitos têm perdido a sua vida porque têm sido retirados dos seus territórios por causa dos grandes empreendimentos, que tem focado naquela orla marinha. Tem tomado dos que realmente são donos, que vivem lá desde que nasceram, das suas ancestralidades, que estão ali por fato e de direito, mas infelizmente estão sendo retirados, estão sendo coagidos. E por medo, por represálias, por medo de perder a vida – e outros já perderam –, são obrigados a sair. E essa PEC vem fazer muito mal pra gente. Por isso nós dizemos que nós não queremos ela”, declarou.
Na mesma linha, uma nota do MPP, assinado em conjunto com a Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) e o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), alerta que “a possibilidade de privatização dos terrenos de marinha e a maior facilidade de agentes econômicos colocarem seus interesses junto a prefeituras e governos estaduais ocasionaria ameaças aos territórios de povos tradicionais, que habitam há décadas áreas hoje compreendidas nos terrenos de marinha, gerando conflitos fundiários, ameaças a culturas e aos modos de vida destas populações e à sua sobrevivência”.
“Atualmente, já existem diversos casos em que áreas públicas são desrespeitadas e particulares, especialmente agentes econômicos, tentam se apropriar daqueles espaços, gerando conflitos com comunidades que tradicionalmente ocupam as áreas. O menor status de proteção importará no provável aumento da conflituosidade, com possibilidade de poderes locais legitimarem as ocupações ilegítimas atualmente existentes ou aquelas que vierem a ocorrer”, alerta a nota.
O deputado federal Túlio Gadêlha (REDE-PE) destacou os riscos ambientais trazidos pela PEC. “Quando a gente tira da competência da União a gestão desses espaços e atribui ao município, ou à iniciativa privada, você está deixando com o órgão mais frágil, ou então com as pessoas que a gente não sabe se tem responsabilidade com aquele ecossistema, deixando nelas a capacidade de gerir, de fazer essa gestão. E essa é a grande preocupação”, expressou. “A gente sabe também que é nos municípios que existe a barganha política, e ali está mais suscetível à corrupção, está mais suscetível ao acordo que se faz ali entre um empresário, uma grande empresa, e um prefeito. E é essa é a realidade, essa é a realidade do Brasil”, avaliou.
Gadêlha também lembrou o interesse da especulação imobiliária na aprovação da PEC. “A gente sabe a quem interessa essa PEC. A gente viu inclusive um jogador de futebol, Neymar, fazer propaganda de um investimento, tomando como certa a aprovação dessa PEC. Um empreendimento com investimento bilionário nas praias do Nordeste”, expôs.
A iniciativa foi anunciada recentemente pelo jogador em publicações em seu perfil, no de seu pai, Neymar da Silva Santos, e da Due Incorporadora, construtora de imóveis de alto padrão e sócia do jogador no empreendimento, que construirá 28 imóveis nas orlas de Pernambuco e Alagoas. A empresa é uma sociedade entre o também ex-jogador Adaílton Santos – que jogou com Neymar no primeiro ano de sua carreira, no Santos Futebol Clube, em 2009 –, o ator Rafael Zulu e os irmãos engenheiros Abílio e André Costa, como detalhou o Valor Econômico em reportagem do ano passado sobre a empresa.
“Estou junto com a Due na criação da Rota Due Caribe Brasileiro. Vamos transformar o litoral nordestino e trazer muito desenvolvimento social e econômico para a região. Em breve, mais novidades”, disse Neymar. O anúncio foi criticado pela atriz Luana Piovani, que apontou a relação entre o projeto e a PEC, chamando Neymar de “péssimo pai, péssimo homem” e “péssimo cidadão”, ao que o atleta respondeu a chamando de “louca”.
Respondendo diretamente o comentário de Gadêlha ao final da sessão, Flávio Bolsonaro, relator da proposta na CCJ, confirmou o temor daqueles que alertam para a intenção de se formar uma “Cancún Brasileira”, ignorando os impactos ambientais, como apontam críticos da proposta. Ele justificou isso com a eventual geração de empregos.
“[A aprovação] interessa também, obviamente, por causa da geração de empregos. Chegou a ser usado aqui, como argumento contra a PEC, o fato de um jogador de futebol ter o interesse de investir em empreendimentos no Nordeste. Quando, na verdade, o objetivo de todos nós aqui tem que ser a geração de empregos. Não a qualquer custo, como essa PEC não está permitindo”, defendeu. O tal custo, porém, foi apontado como alto pela maioria dos convidados à audiência pública.